No dia 21 de abril de 2020, Brasília comemora o 60º aniversário de sua inauguração. A história da construção da nova capital — em aproximadamente 1000 dias—é amplamente conhecida e já foi alvo de vários livros e documentários. Um assunto não tão discutido, no entanto, são os primórdios da batalha política por trás de sua localização.
Nesse sentido, duas situações tiveram importância fundamental na decisão final da Comissão Especial formada, após a promulgação da constituição de 1946, para a localização e planejamento da transferência da capital do Rio de Janeiro para o planalto central brasileiro: a construção da cidade de Goiânia, inaugurada em 1933, e a histórica articulação de políticos goianos.
A transferência da capital goiana da cidade de Goiás para Goiânia foi, em termos técnicos e políticos, um projeto ousado para a década de 1930, tendo uma histórica figura política local à sua frente: o então Governador Pedro Ludovico Teixeira, nomeado interventor estadual após o movimento de 1930 (sim, aquele!). Dentre os principais desafios da construção de uma cidade “do 0” (ou quase do 0, já que o sítio escolhido para a cidade de Goiânia se localizava próximo à cidade de Campinas — atualmente um bairro), estavam, certamente, a incerteza em relação ao fornecimento adequado de materiais de construção e o modelo imobiliário a ser adotado, a fim de se evitar especulação imobiliária desenfreada. De tão grande, o projeto se inseriu dentro de um contexto retórico de “Marcha para o Oeste” do então presidente Getúlio Vargas.
É preciso ressaltar, nesse momento, que a iniciativa de construção de uma nova capital estadual não era novidade. A construção de Belo Horizonte, na última década do século XIX, havia estabelecido um forte precedente. Além do distanciamento temporal, uma grande diferença entre os dois empreendimentos é a localização geográfica. Ao passo que a capital mineira foi construída em um dos principas eixos sociopolíticos e econômicos do Brasil, a capital goiana foi construída na vasta e despovoada região central.
O sucesso da construção de Goiânia foi a prova técnica definitiva de que era sim possível erguer uma cidade moderna em terras tão longínquas. Mais do que isso: despertou, na classe política local, militância por um empreedimento ainda maior na região: a construção da nova capital. Um claro exemplo disso foram os irmãos Coimbra Bueno, donos da principal construtora responsável pela edificação da nova capital goiana e, na sequência, políticos de destaque no cenário local — como se não bastasse, batizaram dois dos principais bairros da cidade. Ainda na década de 1930, os irmãos fundaram a Fundação Coimbra Bueno pela Nova Capital do Brasil, instituição que articulava estudos e ações público-privadas em prol da transferência. Em 1939, enviaram uma carta a Getúlio Vargas pedindo a transferência da capital ainda durante a vigência do Estado Novo. O pedido, como bem se sabe, não foi acatado, embora tenha motivado a incorporação, no discurso getulista, da expressão “Cruzada para o Oeste”, claramente inspirada no que se chamava — sem problematizações naquela época — de neobandeirantismo. Após a inauguração de Brasília, a Fundação Coimbra Bueno recebeu a alcunha, pelo Decreto 49.873/1961, de utilidade pública. O decreto assinado por Juscelino Kubitschek também mencionava, no campo das considerações, a construção de Goiânia como “obra piloto de Brasília”, evidenciando a relação entre a construção das duas cidades em um período pouco inferior a 30 anos.
Antes mesmo dos irmãos Coimbra Bueno, outras ações políticas já haviam marcado o engajamento de parlamentares goianos na transferência da capital. Fazendo uma brevíssima recapitulação histórica, a transferência foi assunto recorrente na política nacional desde, pelo menos, o início do século XIX. Duas justificativas sintetizam o interesse: desenvolvimento do interior do país e aumento da proteção da capital federal — dada a vulnerabilidade da cidade do Rio de Janeiro, situada na costa brasileira. Analisando o recorte histórico que vai da Independência do Brasil até a fundação de Brasília, somente uma das cinco constituições brasileiras não traziam um artigo relacionado à nova capital — justamente a primeira, de 1824, elaborada unilateralmente pelo Imperador D. Pedro I. Mas, claro, isso não significava ausência de debate. A Assembleia Constituinte, rapidamente dissolvida, havia discutido a ideia. O principal defensor, o deputado constituinte José Bonifácio de Andrada e Silva, inclusive foi o mentor do nome “Brasília”. Já a constituição de 1891 citava explicitamente a mudança de capital em seu artigo 3º, definindo até mesmo a área a ser demarcada.
Dento desse contexto, já na década de 1890, foi formada uma comissão estritamente técnica para demarcação dos 14.400 km² citados na CF/1891. Batizada em homenagem ao líder técnico da expedição, a Comissão Cruls demarcou uma área quase inteiramente inscrita no atual território de Goiás — o “Quadrilátero Cruls” — e elaborou o primeiro documento técnico oficial relacionado à mudança da capital. O relatório da comissão todavia não assegurava que aquela seria a localizão exata do novo Distrito Federal.
Foi assim que, em 1922, começou com maior destaque a atuação política goiana no assunto. Em comemoração ao centenário da Independência, o deputado federal goiano Americano do Brasil propõe matéria que versava sobre a instalação, no dia 7 de setembro, da pedra fundamental de Brasília em local inserido na área do Quadrilátero Cruls. A matéria foi aprovada pelo congresso e sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa. O monumento, ainda existente, foi inaugurado, na data marcada, no então município de Planaltina (na parte que, atualmente, é região administrativa do DF).
Somado ao fato de já existir uma área demarcada, a inauguração da pedra fundamental foi o combustível que faltava para a explosão da especulação imobiliária na região. Foi assim que surge, em 1927, o primeiro projeto urbanístico para a Nova Capital — o loteamento da fazenda Bananal. De autor desconhecido, foi uma iniciativa individual para a valorização e posterior venda de lotes no local onde, possivelmente, se localizaria Brasília.
No âmbito das discussões internas da Comissão para Localização da Nova Capital, formada em virtude do artigo 4º da Constituição de 1946, que ordenava a mudança da capital “para o planalto central” do Brasil, outro deputado federal goiano se destacou na defesa inconteste da manutenção da nova capital dentro dos limites do Estado de Goiás: Jalles Machado. O deputado, engenheiro e um dos fundadores da Uniao Democrática Nacional (UDN)em Goiás (sim, o partido de Carlos Lacerda), se destacou na oposição às ideias do deputado federal mineiro Israel Pinheiro, que posteriormente viria a ser o primeiro presidente da Novacap e uma das principais caras do governo JK. Israel Pinheiro defendia que a nova capital fosse instalada em uma cidade já existente, preferencialmente no Triângulo Mineiro. Um dos principais simpatizantes dessa ideia, por incrível que pareça, era o então deputado federal mineiro JK.
Quase que desprezando os resultados do Relatório Cruls, a Comissão analisou, inicialmente, 8 regiões (já povoadas ou não) que poderiam sediar a nova capital federal: Uberaba, Ituiutaba, Uberlândia, Patos de Minas, Ipameri, Quadrilatero Cruls e Chapada dos Veadeiros. Além disso, ocorreu uma ampla discussão sobre a magnitude da área do Distrito Federal. O embate entre Israel Pinheiro e Jalles Machado se deu em virtude da interpretação do termo “Planalto Central”, citado na Constituição como a macrorregião que receberia Brasília. Jalles, em defesa da construção de uma nova cidade e, ainda, da manutenção desta no interior do quadrilátero Cruls, afirmou que a região do Triângulo Mineiro não poderia ser considerada Planalto Central, dada a amplitude da altitude: desde 150 m até 1500 m. Com esse argumento, a ideia do Triângulo Mineiro foi definitivamente refutada. Além disso, o parlamentar apresentou, em 1947, um projeto pioneiro de interligação rodoviária e fluvial do centro do Brasil com as outras regiões — projeto que foi, no mínimo, inspiração para o projeto de interligação implementado.
Em relação às demais regiões, o debate foi tão intenso que um empresa estadudinense (Donald Becher and Associates Inc.) foi contrada, já em 1954, para elaboração de um estudo técnico — em teoria, o estudo seria completamente alheio aos interesses regionais. Apenas em 1955, após a pré-seleção de 5 regiões e a eleição da melhor sob critérios de clima, topografia, abastecimento de água e outros, a atual região do DF foi demarcada — uma área quase 3 vezes menor que a do quadrilátero Cruls.
Uma vez definido que a área de fato estaria completamente inserida no estado de Goiás (uma enorme vitória política para o estado), houve uma mobilização para desapropriar a área em tempo recorde. Dessa maneira, a desapropriação foi inciada ainda em 1955, comandada pelo governador José Ludovico de Almeida, sobrinho de Pedro Ludovico, o político responsável pela transferência da capital de Goiás. Os recursos para a desapropriação ainda são alvo de polêmica. O que se sabe, no entanto, é que houve uma intensa articulação do senador Jeronymo Coimbra Bueno (um dos dois irmãos da família Coimbra Bueno) para viabilizar a engenharia financeira que vinculava os recursos federais e os estaduais para que o estado de Goiás começasse, já em 1955 e por conta própria, a desapropriar os 5.800 km² do novo Distrito Federal.
Nos importantíssimos anos de 1956 e 1957, dois outros eventos marcaram o protagonismo do Estado na mudança da capital. Foi em um evento em Jataí, no ano de 1956, que JK prometeu que cumpriria integralmente a Constituição de 1946 e, portanto, consolidaria a transferência da capital — como visto anteriormente, a própria desapropriação de terras do Distrito Federal já estava a pleno vapor a essa altura. O anúncio veio após a folclórica situação em que “seu Toniquinho” — um honorário cidadão de Jataí—pergunta a JK se, caso eleito, cumpriria toda a Constituição. A resposta, claro, foi que sim. A partir de então, a construção de Brasília passaria a integrar e ser o centro do Plano de Metas, um ousado conjunto de ações desenvolvimentistas nos moldes dos planos quinquenais.
Por fim, no ano de 1957, foi estabelecido o ato que poria fim à ansiedade goiana em relação à conclusão do processo de transferência: a lei 3.273/1957, de proposição do deputado federal Emival Ramos Caiado (tio do atual governador Ronaldo Caiado). A lei definia uma data específica para a inauguração da nova capital federal: o dia 21 de abril de 1960, exatamente 933 dias após sua sanção. A data, obviamente, não era uma mera coincidência com a efeméride de morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Ironicamente, Emival Ramos Caiado era um parlamentar filiado à UDN, provando que, para a elite política goiana daquela época, os interesses regionais sobrepunham a histérica oposição do partido ao governo JK.
Em 21 de abril de 1960, como estabelecido na lei, Brasília foi inaugurada e a administração federal começou a migrar para o planalto central do Brasil, concretizando anos de articulações políticas e iniciando um amplo processo de interiorização do desenvolvimento nacional.
Um artigo de Múcio Bonifácio Guimarães Filho
Solicitado e Autorizado pelo Secretário Geral de Comunicação e Informática.
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