É o nosso artigo de numero 213, cuja publicação foi antecipada pelo Diário da Manhã, de Goiânia, para esta sexta feira e encontra-se circulando na página 7 do Caderno Opinião Pública.
Agradecendo a leitura, comentários e compartilhamentos, ei-lo integral em nossa página.
As manhãs dos domingos estarão menos alegres. A dama adorada, sentada em seu trono e aplaudida por um auditório composto por pais e avós, nos brindava com as melhores páginas das músicas caipira/ sertaneja, interpretadas especialmente por aqueles que não têm espaço na sofisticada televisão brasileira. Que maravilha de seres humanos. Desde 1980 presenças de coração, com graça e amor, vivendo momentos de felicidade, que são negados pela sociedade moderna em grande maioria, aos pertencentes a terceira idade, milhares deles vivendo solitariamente, abandonados e sem carinho.
“Viola Minha Viola” transformou-se em um auditório nacional, conduzido pela pureza e simpatia de Ignês Magdalena Aranha de Lima, que nasceu na cidade de São Paulo, em 04 de março de 1925, artisticamente recebendo o nome guardado eternamente em nossos corações, Inezita Barroso. Foi cantora, atriz, instrumentista, bibliotecária, folclorista, professora, apresentadora de rádio e televisão. Recebeu o título de Doutora Honoris Causa em Folclore e Arte Digital pela Universidade de Lisboa. Atuou também em espetáculos, álbuns, cinema, teatro, produzindo peças musicais de renome nacional e internacional. Adotou o sobrenome Barroso após casar-se aos 22 anos com o advogado cearense Adolfo Cabral Barroso. Teve só uma filha, Marta Barroso.
Com 7 anos, Inezita Barroso começou a cantar e tocar viola e violão. Estudou em conservatório e aprendeu piano. Nasceu em família abastada e apaixonada pela cultura. Foi distinguida com prêmios importantes como Trofeu Roquette Pinto, Prêmios Guarani e Saci, condecorada com a Medalha Ipiranga, recebendo título de Comendadora da Música Raiz. Proferiu muitas palestras sobre folclore e lecionou em diversas faculdades, sendo homenageada com o título Honoris Causa em Folclore Brasileiro. Em Goiás, foi homenageada com a Comenda Anhanguera, como seu conterrâneo que desbravou sertões, ela também foi uma bandeirante da música caipira. Lutadora por suas convicções muito antes do feminismo virar moda.
Arley Pereira escreveu para a Editora 34 o livro “Inezita Barroso, a História de uma Brasileira”, em que ele conta: “Inezita já nos anos 1920, menina bem nascida, comandava a turma de garotos ao mundo cor de rosa dos laços de fita. Na fazenda, a jovem sinhazinha preferia a companhia da caipirada aos saraus de piano. Só passava as férias no meio dos peões”.
Acrescenta que aos 7 anos ganhou um violão, mas ela gostava mesmo era de viola, coisa proibida para mulheres. Nas festas de aniversário ouvia Raul Torres, amigo de seu pai. Caminhou brilhantemente defendendo uma música por muito tempo excluída das programações de rádio e televisão. Gravou mais de 80 discos, interpretou para o astro Vittório Gassman. Tornou-se amiga da fadista Amália Rodrigues, interpretou diversos gêneros musicais, inclusive o marcante samba “Ronda”, mas entregou-se de corpo e alma à música de raiz, desde 1950, quando estreou no rádio, tornando-se artista profissional em 1951, em recital de Pernambuco, onde apresentou-se a convite do maestro Capiba, famoso autor de frevos.
Num brado de revolta, um grito de independência da mulher, corajosamente compôs e começou a cantar uma música que trouxe de início crítica pejorativa, muita graça e com incorreções, mas imortalizada, contando os desequilíbrios de uma mulher. Hoje não há roda de viola, festas e em boates chiques que esta página do folclore brasileiro, quando iniciada não é acompanhada pelos presentes. Nem é preciso dizer o seu nome. “Moda da Pinga”. Muitos intitulam como “Marvada Pinga”.
“Co’a marvada pinga é que eu me atrapaio, Eu entro na venda e já dô meu taio, Pego no copo e dali num saio, Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio, Só pra carregá é queu dô trabaio, oi lá!
Venho da cidade, já venho cantando, Trago um garrafão que venho chupando, Venho pros caminho, venho trupicando, Chifrando os barranco, venho cambeteando, E no lugar que eu caio já fico roncando, oi lá!
O marido me disse, ele me falô, Largue de bebê, peço pro favor, Prosa de home nunca dei valor, Bebo com o sor quente pra esfriá o calô, Se bebo de noite é pra fazer suadô, oi lá!
Cada vez que eu caio, caio deferente, Meaço pra trás e caio pra frente, Caio devagar, caio de repente, Vou de currupio, vou deretamente, Mas sendo de pinga eu caio contente, oi lá!
Pego o garrafão é já balanceio, Que é pra mode vê se tá mesmo cheio, Num bebo de vez por que acho feio, No primeiro gorpe chego inté no meio, No segundo trago é que eu desvazeio, oi lá!
Eu bebo da pinga porque gosto dela, Eu bebo da branca, bebo da amarela, Bebo no copo, bebo na tigela, Bebo temperada com cravo e canela, Seja quarqué tempo vai pinga na goela, oi lá!
Eu fui numa festa no rio Tietê, Eu lá fui chegando no amanhece, Já me deram pinga pra mim bebê, Já me deram pinga pra mim bebê, tava sem fervê, oi lá!
Eu bebi demais e fiquei mamada, Eu caí no chão e fiquei deitada, Aí eu fui pra casa de braço dado, Ai de braço dado é com dois sordado, Ai, muito obrigado!”
Música ousada. Grito de autonomia da mulher que bebe e se embriaga, mas se posiciona assim dizendo: “Prosa de home nunca dei valor”.
Inezita Barroso cantou páginas como “Tristeza do Jeca”, “João de Barro”, “Rio de Lágrimas”, “Menino da Porteira”, “Romaria”, “Poeira”, “Pagode em Brasília”, “Adeus Minas Gerais” e diversos outros ritmos, inclusive tango. Mas a saudade de Inezita baterá muito forte sempre quando ouvirmos sua composição, também um hino de expressão perfeita de sentimento.
“Lampião de gás, Lampião de gás, Quanta saudade, Você me traz. Da sua luzinha verde azulada, Que iluminava a minha janela, Do almofadinha lá na calçada, Palheta branca, calça apertada.
Do bilboquê, do diabolô, Me dá foguinho, vai no vizinho, De pular corda, brincar de roda
De benjamim, jagunçu e Chiquinho. Lampião de gás, Lampião de gás, Quanta saudade Você me traz.
Do bonde aberto, do carvoeiro, Do vossoureiro, com seu pregão, Da vovózinha, muito branquinha, Fazendo roscas, sequilhos e pão, Da garoinha fria, fininha. Escorregando pela vidraça, Do sabugueiro grande e cheiroso, Lá no quintal da rua da graça.
Lampião de gás, Lampião de gás, Quanta saudade Você me traz”.
Inezita Barroso. Você não foi. Você estará entre nós eternamente. No espaço celestial, todos os domingos de manhã, surgirá entre estrelas iluminadas e aplaudida pelos nossos pais e avós que lá se encontram, todos de pé, sorridentemente, ouvindo dizendo com o seu sorriso encantador:
“VIOLA MINHA VIOLA, ÊTA PROGRAMA QUE EU GOSTO”!